Naufrágio do Barco Comte. Sales completa 8 anos.

A tragédia do naufrágio Comandante Sales, ocorrido no dia 04/05/2008, completa 08 anos. Abaixo segue relato de alguém que viveu momentos agonizantes. Félix Coelho, junto com seu pai, irmãos e amigos eram tripulantes do Barco Comandante Coelho e foram os primeiros a socorrer dezenas de sobreviventes.

Domingo, 04 de Maio de 2008, por volta das 05h30, estou sonolento, deitado no camarote da embarcação Almirante Coelho, conduzida pelo meu pai, Francisco Coelho, enquanto meus dois irmãos mais velhos (Alexandre e Sandro), irmão caçula (Ney) e amigos estão no convés do barco. Após uma noite em claro, tento dormir, contudo, ainda ouço conversas em meio ao barulho do motor da embarcação. Esse estado de sonolência e consciência foi abruptamente interrompido ao ouvir, claramente, o grito de “desespero” do meu pai: “- Pelo amor de Deus, vai...” Tão logo o ouço, salto da cama, ligeiramente, abrindo a porta do camarote e me deparo com a visão de um barco virado de cabeça pra baixo, em pleno Rio Solimões.

Há alguns minutos atrás, logo depois de desatracarmos, pude perceber que estávamos sendo ultrapassados por outro barco. Recordo-me que, por volta das 04h30, mais ou menos, meus irmãos e amigos, já à bordo do barco, sugeriram ao meu pai que retornássemos pra casa. Contudo, meu pai se opôs à ideia e lembrou “o acordo era sairmos daqui somente ao amanhecer”. A verdade é que, de maneira prudente, meu pai temia as condições daquele momento, pouca iluminação devido à fase da lua. O que, então, fez com que todos esperassem melhores condições de navegação.

O barco que nos ultrapassou, logo na saída do furo (espécie de atalho para a localidade) foi exatamente o mesmo que, nesse momento, estava com o casco pra cima. Conforme relato do meu pai, senhor Francisco Coelho, o barco deu duas balançadas e, na terceira, virou.

Aproximação - várias pessoas já se amontoavam à espera de socorro (Foto: Félix Coelho)

Tão logo nos aproximamos da embarcação virada, alguns sobreviventes, desesperadamente nadavam até nossa embarcação, onde nos apoiávamos na borda e os puxávamos pelos braços para dentro de nosso barco.

Um misto de emoções tomava conta de mim, sentia-me assustado e, ao mesmo tempo, eufórico por estar ali e poder presenciar algo ímpar e ajudar no resgate de muitos. Por ordem do meu pai e, para segurança de todos, pedimos que as pessoas que resgatássemos sentassem no convés do barco, pois, nesse momento, já estávamos superlotados e, o perigo era iminente naquelas condições.

Navegamos até o cais da cidade e, já de longe avistamos uma multidão de curiosos e familiares de pessoas que haviam de estar na localidade onde aconteceu o evento. Tão logo atracamos, presenciamos abraços de alívio, em meio a muitas indagações de, até então, desaparecidos. Após o desembarque daqueles que resgatamos, nos reunimos e fizemos uma oração, antes de partir para o cais da Terra Preta, local onde meu pai guardava o barco.

Mesmo antes de chegar em casa, avistei minha mãe que já nos aguardava próximo de casa, nesse instante, as rádios local já anunciavam a tragédia que marcaria a história da população de Manacapuru. Necessitadamente passei direto pro meu quarto, precisava dele; nada mais propício que o conforto do nosso lar para desabafar, o choro estava entalado há horas.

As horas seguintes demonstravam a dimensão da tragédia que não podíamos mensurar. Particularmente, não imaginava quantas pessoas ainda havia naquele barco, quantas pessoas sequer conseguiram esticar o braço pra que eu as puxasse. Por algum tempo, sentia-me, de certa forma, receoso em ser tachado de omisso, sentia uma ponta de culpa, imaginando que, no desespero da dor, alguém cobraria de mim, a ausência de seu ente querido - “Você estava lá e não trouxe meu irmão/ã”.

Passaram-se oito anos, mas as lembranças ainda são muito nítidas. Foram momentos de dor, de luto coletivo, de solidariedade e humanidade. Em cada canto da cidade uma roda de prosa, em toda prosa o mesmo assunto. Aos que sobreviveram, a gratidão a Deus pelo livramento; e aos que perderam seus entes queridos, reitero aqui os meus sentimentos.


Félix Coelho

Natural de Manacapuru, formado em Tecnologia em Redes de Computadores, pelo Centro Universitário do Norte - UNINORTE, é webdesigner e webwriter.